domingo

Um Encontro Inesperado


Primeira Parte - A Colina
Terceira Parte - Um Encontro no Jardim
Quarta Parte - Encontros
Final - Desencontros

    Pedro nunca vira a garota antes. Estava assustado. “Como ela chegou aqui em cima?”. Todavia, a menina lhe deu um abraço tão apertado e tão caloroso que ele se sentiu envergonhado por não retribuir.
    — Esperei muito por esse dia. — disse ela com um sorriso faceiro, o olhar distante, como se lembrasse de algo agradável que passara, e sentando-se na cama novamente.
    — Hum... Desculpe, mas... Quem é você? E... E como chegou aqui? — Pedro continuou onde estava, incapaz de dar um passo sequer, em qualquer direção.
    O sorriso da menina apagou-se tão de repente e foi tão profundo que Pedro teve dúvida se o tinha visto realmente. Os olhos dela, de um tom azul familiar, brilharam com lágrimas contidas.
    — Achei que você fosse gostar de me ver... — disse desviando o olhar para as mãos sobre as pernas.
    Pedro se deu conta de que preferia vê-la sorrindo, estava a ponto de chorar com sua tristeza. Era estranho, mas tinha a impressão de que a conhecia.
    — Desculpe. — conseguiu dizer.
    — Não... A culpa não é sua...
    — Como assim? — sentiu-se um idiota por fazer aquela pergunta.
    — A culpa é do papai.
        Pedro ficou sério. “Ela não pode estar dizendo o que eu acho que ela está dizendo”.
    — Do seu pai? O que quer dizer com isso? — ele torceu para que ela dissesse: sim, meu pai.
    — Do nosso pai! — respondeu ela com um sorriso cheio de alegria, como se as implicações daquela informação fossem a melhor coisa do mundo — Sou sua irmã, Pedro! E finalmente encontrei você!
    — Minha o que? Não tenho irmã. — ele desviou o olhar para a janela e continuou com a voz embargada — Sou só eu e meu pai...
    — Você sabe por que é assim? — perguntou ela deslizando uma das mãos sobre a colcha que cobria a cama — Por que papai nunca te contou sobre mim? Ou sobre o que aconteceu com a mamãe? Ou ainda, sabe por que vivem mudando de um lado para o outro? Por que ele não deixa que você se despeça dos seus amigos?
    Um vento frio entrou de repente pela janela, sacudindo os cabelos e roupas da menina de uma forma tão assustadora e penetrante, que os cabelos da nuca de Pedro se ergueram em sinal de protesto e pavor. Ele sacudiu a cabeça. “Como ela pode saber de tudo isso?”.
    — Pedro... — ela fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras certas — Papai nunca contou... porque não confia em você.
    Pedro ficou imóvel ante as duras palavras. Não conseguia entender o que estava acontecendo, apesar de se esforçar muito. Não conseguia se livrar da sensação de que algo estava errado, a mesma sensação que sentira desde o balanço no jardim, talvez, pensando bem, a mesma que sentira quando chegara ali. Algo na menina o estava prendendo, talvez o modo como sorria ou se mostrava alegre em vê-lo. Queria que fosse verdade o que ela contara, que era sua irmã, desejava isso. E, mesmo sabendo que nada fazia sentido, não conseguia se livrar dela e não sabia explicar como. A única coisa que realmente fazia sentido era que seu pai não confiava nele. Disso não tinha dúvida, mas sabia que, de alguma forma, ela havia intensificado o significado disto dentro dele. Estava preso a ela, como numa teia invisível de palavras e sentimentos.
    — Por que... por que diz que ele não confia em mim?
    — Por que ele pensa que você é perigoso... — respondeu ela com uma expressão inocente, como se não soubesse o quanto era doloroso para ele ouvir.
    — Perigoso? Por quê?!
    — Pelo o que aconteceu comigo e com a mamãe... Na verdade, ele quer acreditar que você é perigoso, assim pode ficar com a consciência mais leve.
    — Eu... não entendo. O que... o que aconteceu?
    — Ele acredita, ou quer acreditar, que você me matou. Mas eu sei que não foi você. Foi ele.
    — Ei! Calma aí que essa loucura já foi longe demais! Você está querendo me convencer de que está morta, apesar de estar aqui, na minha frente, me dizendo um monte de... de... maluquices... E ainda quer que eu acredite que meu pai coloca a culpa disso em mim?!
    — Não quero te convencer Pedro! — disse ela séria, cruzando os braços e juntando as sobrancelhas — Estou apenas te contando tudo o que sempre quis saber! Sou sua irmã... ou... ou... era. — a última palavra quase se perdeu no ar, Pedro só a ouviu porque se mantinha muito atento a tudo o que ela falava.
    — Então é isso? Você está morta? E fui eu quem te matou?
    — Não foi você... foi o papai.
    A naturalidade com a qual proferia as palavras era tão pura e simples, que não havia como Pedro não acreditar. Cada palavra, cada espaço de respiração entre elas, cada frase, tudo parecia ter sido feito perfeitamente nas forjas de sua alma, para que ele entendesse e aceitasse sem questionar, sem duvidar.
    — Como foi...? — perguntou Pedro cedendo os ombros e sentando-se rendido na banqueta ao pé da cama.
    — Ele me deixou de castigo aquele dia. Você sabe... “vá para o seu quarto e não saia até eu mandar”. Foi um pouco antes do jantar. Não lembro o que fiz, mas deve ter sido alguma coisa séria, pois ele saiu em seguida batendo a porta. Mamãe não achou justo, acho, pois ficou lá comigo, sabia que eu tinha medo. Ele também sabia que eu tinha medo. — completou ela com rancor, pela primeira vez — Você também estava lá. Tão pequeno... três anos apenas! Não entendo como ele pode pensar em te culpar!
    A menina olhou para fora, deixando o olhar vagar pela noite e recebendo um pouco de ar fresco sobre a face.
    — E... e... como aconteceu? — perguntou impaciente.
    — Quando ele chegou, bêbado como sempre...
    — Bêbado?! — interrompeu Pedro — Papai nunca bebe! Nunca!
    — Realmente não. Ele parou depois do que aconteceu. Mas naquela noite ele estava muito bêbado. Ele viu que a mamãe estava no quarto, ela tinha adormecido cuidando de nós. Ele ficou furioso, lembro que estava gritando e... e bateu nela, depois me tirou da cama e me bateu.
    Era demais para Pedro. Ele não queria ouvir mais nada. Queria correr para longe dali, para longe dela, mas não conseguiu. Sentiu como se suas pernas não fossem suas, como se estivessem recebendo ordens de outro cérebro.
    — Eu fiquei desacordada. Mamãe gritava desesperada, tentava lutar contra ele, tentou me tirar dos braços dele, mas ele não deixou. Ele pensou que eu estava morta... — ela fez uma pausa ofegante antes de prosseguir — Então ele teve a brilhante idéia de me jogar pela janela, para fazer parecer um acidente.
    — Mas... — interrompeu Pedro — Isso não daria certo. A polícia tem meios de descobrir.
    — Sim, tem. E é por isso que vocês se mudam com tanta freqüência.
    Algo, como um estalo na mente de Pedro, avisou-o de que as peças do quebra-cabeça estavam racional e perfeitamente encaixadas. Não havia arestas na história, exceto, talvez, uma.
    — E a mamãe?
    — Ela ficou louca. — foi a resposta direta e simples da garota. Àquela altura da conversa, a voz dela estava tão fria, que Pedro arrepiou-se ao ouvi-la.
    — Louca? — conseguiu dizer.
    — Sim. Ela não suportou o que aconteceu.

   Continua...

A Colina

Segunda Parte - Um Encontro Inesperado
Terceira Parte - Um Encontro no Jardim
Quarta Parte - Encontros
Final - Desencontros

    Toda a Colina pertencia a uma antiga família; do Veio de Prata (um riacho de águas caudalosas à oeste) até o Bosque Cinzento, à leste. No centro da propriedade, destroços de um antigo estábulo e uma casa velha e abandonada faziam um estranho contraste com um soberbo jardim e um pequeno lago cristalino e repleto de vida. Era sublime e assustador vê-los a qualquer hora que fosse. Enquanto a casa parecia ter sido deixada às traças, o jardim parecia receber cuidados todos os dias, com o melhor dos jardineiros.
    O pôr-do-sol chegara mais cedo àquele dia n’O Vale, e uma brisa fria sacudia as folhas da única árvore na Colina no início da noite. Os poucos raios de luar atravessavam o manto de nuvens escuras e lançavam uma sombra fraca sobre o casarão quase em ruínas.

    O senhor Alcântara desceu a escadaria às pressas, estava atrasado para uma entrevista incomum. Era um homem alto, de cabelos curtos em cachos escuros. Tinha os ombros caídos sob o fardo de um segredo terrível. Há dez anos, seus olhos azuis perderam o brilho e em seu lugar ficara apenas o cinza opaco e sem vida. Fazia apenas quatro dias que recebera a notícia de que havia herdado toda a Colina. Qualquer um que conhecesse os mistérios daquele lugar e a história de vida do senhor Alcântara, diria que ele não merecia o que estava para acontecer. Ele era um homem bom, mas não demonstrou a quem mais importava.
    Seu filho, Pedro, um menino de olhos azuis como os do pai e cabelos castanhos como os da mãe, desceu logo atrás, falando alto; o mesmo assunto de sempre:
    — Não acho justo pai! Nem pude me despedir! Por que de novo?
    O senhor Alcântara virou-se para o filho com um olhar que misturava compaixão e aborrecimento. Ele soltou os ombros e suspirou.
    — Você só tem doze anos. Quando for mais velho poderá entender, então, prometo lhe contar. — ele perdera a conta de quantas vezes repetira a mesma frase ao longo dos anos.
    — Sempre a mesma coisa! Estou cheio disso!
    O senhor Alcântara virou-se para o cabide ao lado da porta, pegou seu casaco, dobrou-o sobre o braço, apanhou o guarda-chuva e saiu sem dar atenção aos protestos do filho.
    Pedro o seguiu correndo, mas parou no degrau da varanda. Não achava certa ou justa a atitude do pai. Não entendia por que precisavam se mudar com tanta freqüência e em tão pouco tempo. Esta era a rotina dos dois desde que se lembrava. Já não agüentava mais sair no meio da noite, como se estivessem fugindo, sem se despedir dos poucos amigos que conseguia fazer. A raiva inchava em seu peito e ele achou que iria explodir se não dissesse alguma coisa.
    — Tudo bem, então! — gritou — O senhor disse que não pode me contar, mas a verdade é que não se importa comigo! — o senhor Alcântara parou onde estava, de costas para o filho — Não se importa se eu deixo meus amigos, se nunca mais falo com eles! Não se importa...! — lágrimas verteram sobre seu rosto, mas ele continuou falando — Também não vou me importar mais. Eu tenho vontade de sumir, de nunca mais olhar pra você! Talvez eu faça isso. Talvez o senhor não me encontre aqui quando voltar. Eu te odeio pai! Te odeio!
    O senhor Alcântara virou-se para o filho sem saber o que fazer. Olhou-o como se não o conhecesse. Teve vontade de dar-lhe uma surra por dizer tantas bobagens. Mas ele o amava. Amava tanto que sofria ao ver o sofrimento do filho. Mas ele não poderia contar. Jamais diria ao menino que tudo, tudo, era por ele.
    — Vá para dentro Pedro. — disse com frieza — Para o seu quarto. E não saia de lá até eu voltar.
    O senhor Alcântara virou-se novamente e desceu a colina até a garagem perto do portão.

    Pedro enxugou as lágrimas com a camisa e se arrependeu do que dissera. Amava o pai, mesmo sem entender o que estava acontecendo. Contudo, como um gesto de rebeldia, não seguiu para o quarto, mas para o pequeno e rústico balanço sob a árvore.
    Ele olhou a casa e mais uma vez sentiu arrepios. Ela era assustadora, mesmo de dia. Os anos, talvez séculos, de existência sob sol e chuva, haviam desgastado a pintura criando listras escuras onde a água escorrera, dando-lhe um aspecto melancólico e terrível. Ela era estranha. As janelas de guilhotina, em vãos salientes, pareciam ter sido espalhadas ao acaso. Um estilo gótico e vitoriano, com gárgulas monstruosas, completava a figura ameaçadora. “Por que ali?” perguntou-se. “Por que não numa casa comum?”.
    Um vento mais forte cruzou o jardim como se sussurrasse algo que ele não poderia identificar. Um ruído baixo, junto ao canteiro de rosas, fez com que saltasse de repente do balanço. Ele olhou para os lados e deu-se conta de que estava sozinho. “Talvez seja realmente melhor esperar no quarto”.

    O interior da casa era tão aterrorizante quanto o exterior. Era escuro e, mesmo que todos os candeeiros a gás fossem acesos, ela continuaria a ser sombria sob a fraca luz amarelada. Móveis velhos e repletos de pó pareciam ocupar cada centímetro da casa. A mobília de nogueira e os tapetes castanhos e verdes, quase apagados, completavam a impressão de estar entrando no século XVIII ou XIX. Com certeza estava abandonada há muito tempo.
    A porta de folha dupla reclamou quando ele a fechou e um pouco de pó caiu sobre a cabeça. Ele sacudiu a poeira e olhou-se no espelho de corpo à sua frente. “Lugar estranho para se colocar um espelho”.
Não conseguia lembrar de algum dia ter se sentido pior. Suspirou, deixou cair os ombros e não pôde evitar um sorriso: fizera exatamente como seu pai costumava fazer quando estava aborrecido.
    Ao lado do espelho havia uma mesa com vários porta-retratos antigos, provavelmente do início do século. Eles estavam ali há três dias, mas só então uma das fotos chamou sua atenção. Era de um garotinho, tirada à frente do jardim, com a casa, já em ruínas naquela época, logo atrás. Na janela correspondente ao quarto de Pedro havia uma mancha branca. Ele esfregou o dedo no vidro a fim de limpá-lo, mas a mancha estava do lado de dentro, ou na própria foto. Ele virou o porta-retrato para abri-lo e viu letras retorcidas e manchadas, como se tivessem sido escritas entre lágrimas:

“Não queria que tivesse acontecido, meu Peter, meu menino. Minha vida se finda em lágrimas e saudade do menino que corria e brincava pela casa”.
Mamãe

    Pedro mal pôde assimilar as palavras quando, de repente, um estrondo no andar de cima, como algo pesado caindo sobre madeira, o assustou. Seus braços ficaram moles e o porta-retrato caiu no chão, quebrando com um som agudo. O barulho soou pela casa silenciosa. Os poucos candeeiros acesos piscaram e apagaram.
    Ele abaixou para engatinhar em busca de abrigo e cortou a mão num caco de vidro. Abafou um grito e caminhou tateando o chão até a parede da porta. Sabia que havia um relógio quase da sua altura ali, mesmo que não estivesse funcionando, e sabia que poderia se esconder entre ele e o armário de pratarias, atrás das pesadas cortinas.
    Esperou por quase dez minutos, mas não houve mais barulho. “Provavelmente foi algo idiota e antigo que caiu com o vento” disse pra si mesmo. Ele limpou o sangue das mãos na cortina e, sentindo-se estúpido e covarde, saiu do esconderijo em busca de algum candeeiro próximo. Encontrou-o, acendeu-o, olhou ao redor e perguntou-se mais uma vez: “Por que aqui?”.
    Pedro achou melhor subir, apesar da pedra de gelo em seu estômago insistir para que continuasse escondido. A escadaria era outra coisa que lhe irritava. Toda vez que alguém subia ou descia ela reclamava como uma senhora rabugenta, como se na verdade estivessem pisando sobre seus ossos velhos.
    Ele seguiu para o quarto com cautela, olhando cada cômodo que estivesse com a porta aberta, tentando ouvir qualquer ruído estranho e evitando as tábuas que faziam barulho. Nada estranho aconteceu ou foi visto no corredor, mas ele não conseguia se livrar da sensação de que algo estava muito errado. Sua mão latejava e seu coração estava disparado. “Por que o senhor me deixou aqui sozinho?”.
    A porta de seu quarto estava fechada. Ele pôs a mão sobre a maçaneta, girou e abriu devagar. Sem que pudesse pensar ou reagir, alguém o agarrou numa espécie de abraço desajeitado.
    — Ei! — gritou tentando se livrar dos braços de quem quer que fosse — Me solta! — quando se recuperou do susto, viu uma garotinha agarrada à sua cintura. Ela devia ter uns seis anos. Estava usando vestido, um laço de fita, que prendia os cabelos muito escuros e cacheados, e sapatos. Tudo era tão branco, a exceção dos cabelos, que ele achou que nunca tinha visto um branco tão branco. E ela era tão... estranha.
    — Olá Pedro! — disse ela como se o conhecesse por toda a vida — Estava esperando você.

Continua...