quarta-feira

Sangue e Dor

    Elen estava na cozinha. A torneira da pia jorrava. Sangue escorria na faca em sua mão trêmula e lágrimas desciam por sua face. Sentia-se perdida, não sabia o que fazer.
    Como posso ter deixado tudo acabar assim?
    Respirou fundo em seu desespero tentando colocar os pensamentos em ordem.
    Ele estava lá em cima, insensível a tudo agora. Seu marido nunca mais a tocaria novamente.
    O que acontecerá aos meninos? O que iriam pensar depois que...? Mais uma vez, Elen se perdia com os questionamentos mundanos de quem nunca se preocupa consigo.
    Lembrou-se das brigas, sempre o mesmo motivo, banal e sem propósito: ciúme. Nunca entendera, nunca dera motivo para que ele desconfiasse dela, mas ele insistia em desconfiar. Hoje sabia por quê. Ele a traía.
    Ela o viu com a amante há duas horas. Finalmente entendeu: ele não se sentiria culpado se criasse a fantasia de que ela o traía.
    Típico dele. Como pude não notar? O conhecia há tanto tempo! Ou nunca o conheci de verdade? Será que ele fingia o tempo todo? Quantas mentiras, quantas amantes em dez anos?
    Elen sacudiu a cabeça. Precisava espantar os pensamentos inúteis. Precisava tomar providências imediatamente. Ser tão fria quanto ele agora. Estava tudo acabado. Ele não a prejudicaria mais, nunca mais. Nunca se imaginou numa situação como aquela. Estava perdida. Sentia-se perdida. Confusa.
    A dor em seu corpo começou a incomodá-la, lembrando-lhe de que era apenas mulher, humana, frágil. Seu sangue escorria pela faca. A ardência em sua mente era pior que a dor do corte profundo...
    Como será? Realmente vou me sentir sozinha? Ou não vou sentir nada depois da dor?
    Voltou a pensar nos filhos, Thomas e Samanta. Tom cuidaria de Samy na falta dos pais? Ele era apenas uma criança, não poderia esperar muito dele. Mas era corajoso, como o pai. Determinado. Os olhos eram dela, verdes. Samy tinha apenas quatro anos, com certeza ficaria abalada.
    Como doía! Nunca imaginara que seria tão doloroso, nunca imaginara que aconteceria com sua família.
    Ai! Ela gritou e virou-se de costas para a pia. Um homem descia correndo a escada. Vestia a camisa branca dobrada até o cotovelo e uma calça preta. Estava de meia sem sapatos. A barba por fazer. Os olhos escuros encontraram os verdes. Assustou-se ao ver o sangue na faca, mas foi incapaz de falar.
    Ela olhou ao redor: os móveis fora de lugar, vasos e plantas quebrados e espalhados no chão. Esta era apenas uma conseqüência menor da última briga. Ela o olhou novamente. Tudo estava acabado. Era uma questão de tempo até que estivessem separados para sempre. “Não era isso que ele queria?”, pensou.
    Mas havia algo diferente nos olhos dele. “Seria piedade por causa do que via?”. Não, sabia que não. No fundo ele a amava. “Então por que traiu?” “Como gostaria que acabasse diferente, agora que sentia a dor da partida”.
    “Meu amor” ele disse. “Perdoe-me”.
    Ela sentia a sinceridade em suas palavras. Precisava sentir. Era tudo o que queria ouvir. Virou-se para a pia novamente. Deixou a faca cair. Lavou o dedo que cortara enquanto fatiava a cebola e correu para os braços dele. Precisava de seu abraço. O amava tanto que tentaria novamente.
    Eternamente.

quinta-feira

Desencontros

Primeira Parte - A Colina
Segunda Parte - Um Encontro Inesperado
Terceira Parte - Um Encontro no Jardim
Quarta Parte - Encontros

    Peter continuava sentado sobre a pedra à beira do lago, mesmo que ninguém pudesse vê-lo agora. Observava o homem com quem acabara de conversar subir os últimos degraus da escada para a varanda. O homem sentenciado a sofrer em seu lugar.
    Depois de anos aprisionado, anos sofrendo a solidão dos perdidos, não restava espaço para remorso em sua alma. Apenas o frio insensível. E a vontade de ter de volta o controle sobre sua vida.
    — Fez um bom trabalho até aqui Peter. — disse uma voz sussurrante e fria.
    — Não há um bom trabalho no que faço. — respondeu Peter olhando para o lago e observando a figura translúcida e azulada de uma mulher emergir das águas geladas — Não há nada de bom no que faço.
    Peter contemplou a mulher. Seus cabelos longos moviam-se como pequenas ondulações. Sabia que não era sua mãe quem estava ali, mas, mesmo assim, ainda hoje, depois tanto tempo, sentia-se bem por vê-la novamente.
    — Hoje terá sua liberdade. Não considera que isso seja bom?
    Peter não respondeu. Não queria pensar que sua liberdade custaria a escravidão de outro.
    — Você foi o melhor. Serviu como nenhum outro. Mesmo contando o incidente com a menina há dez anos. Se mostrar à mãe daquela forma, tentar alertá-la, não foi sábio de sua parte.
    — Não me faça lembrar.
    — Trouxe-me a menina quando deveria ter trazido o garoto.
    — Não me faça lembrar! — gritou Peter erguendo-se da pedra e olhando a mulher nos olhos — Não quero lembrar!
    — Perdoe-me. — respondeu ela com um pequeno sorriso satisfeito — Mas você consertou as coisas. Trouxe o menino. Enfim terá sua liberdade.
    — O que vai acontecer a você se eles não saírem? — perguntou ele sentando-se novamente.
    — Estarei enganada em julgar que está se preocupando comigo Peter, meu menino?
    — Não me chame assim. Você não é minha mãe. — respondeu Peter com indiferença — E estou perguntando apenas para saber o que acontece ao jardim se a casa conquistar as almas. Desde que estou aqui o jardim sempre recebe as almas.
    — Você precisa ir. Sinto que a influência da casa está superando o desejo deles de seguir em frente. Não trouxe o homem de volta da armadilha da casa para que ele fique lá dentro.
    Peter levantou-se e seguiu na direção da casa. Parou apenas no limite entre a escada e grama no jardim.

    — Mas então... por que a menina disse que foi o senhor? — ele ouviu o menino dizer.
    — Porque quer aprisioná-los aqui. — respondeu ele.
    — Isso não é verdade Thiago, querido. — ouviu uma voz responder. Não sabia a quem pertencia a voz, mas sabia que a casa teria assumido a aparência de um ente querido. Era assim que acontecia no jardim — Não exatamente. Apenas queremos ficar com vocês. Ter nossa família unida novamente.
    — Amanda. — disse ele com a voz embargada.
    — Não dê ouvidos ao que ela diz Thiago! — gritou Peter, precisava convencê-lo a sair — Venha para o jardim!
    Dentro da casa, o relógio ao lado da porta tocou.
    Uma badalada.

    — Não vá meu amor. Fique conosco. Não era assim que sempre quis? Que voltássemos a nos encontrar, que nossa família se unisse novamente?
    Outra badalada.
    — Não Thiago! Vocês ficarão presos para sempre na casa!
    — Vocês ficarão conosco papai. — disse a menina com alegria na voz — Fique com a gente.
    O relógio tocou novamente.
    Thiago estava atordoado. A visão de sua família reunida novamente o abalou como nenhuma outra coisa poderia fazer. Queria unir sua família. Sempre quis. Sempre desejou.
    O relógio tocou mais três vezes.
    Ele segurou a mão de Pedro e seguiu na direção da porta. Sentia os pés pesados, lentos. Não sabia o que fazer. Queria ficar, mas algo lhe dizia que não deveria.
    — Isso Thiago. Apenas siga para o jardim e feche a porta atrás de você.
    Mais uma badalada.
    — Pedro, meu filho. — disse a mulher estendendo os braços para o menino — Senti tanto a sua falta. Fique comigo. Há tanto tempo espero por um abraço.
    — Mãe... — sussurrou Pedro parando ao lado de seu pai.
    — Não dê ouvidos a ela! Não é sua mãe! É a casa! Ela está fazendo isso. Está se alimentando de suas emoções. Saiam daí!
    — Não posso segura-los aqui Thiago. — disse Amanda se aproximando devagar — Apenas saiba que te amo e sinto sua falta. Se quiser ficar... se também sente minha falta... nossa falta... por favor, fique.
    Thiago não olhou para trás, apenas ouviu. As palavras chegavam a ele como ecos do passado. Um passado onde ele negligenciou a família por tempo demais. Eram palavras que o culpavam, que lhe diziam que era seu dever consertar as coisas.
    Ele ergueu a mão em direção à porta. Não havia atravessado. Sentiu o aperto da mão de Pedro. Não iria atravessar.

    O relógio tocou a última badalada.

    Thiago fechou a porta.



    Quando o sol despontou sobre as montanhas pela manhã, seus raios incidiram sobre um telhado limpo de telhas de barro e paredes brancas e novas. Não havia sinais de limo nas janelas nem teias de aranhas nas colunas. A velha casa da colina estava como nova e parecia respirar o ar orvalhado da alvorada. O único contraste com a belíssima vista era o jardim malcuidado. A grama estava amarelada, as flores murchas, as árvores secas e o lago, antes tão límpido e tão belo, jazia cinza e sem vida.

    Ao pé da colina, um homem bem vestido, de traços finos e elegantes, contemplava sua antiga prisão. Contudo, não parecia feliz. Em seu íntimo remoia a pergunta feita pelo jardim em sua última conversa: hoje terá sua liberdade. Não considera que isso seja bom?
    Antes de dar as costas para a casa e o jardim, Peter viu um menino olhando-o pela janela mais alta.
    — Vou encontrar um jeito de tirá-lo daí garoto. — disse ele virando-se para a rua de pedras desgastadas — Não serei livre enquanto você não for.

Fim.

segunda-feira

Encontros

Primeira Parte - A Colina
Segunda Parte - Um Encontro Inesperado
Terceira Parte - Um Encontro no Jardim
Final - Desencontros

    Pedro não sabia o que pensar. Não podia acreditar que sua história fosse tão triste, permeada de tragédia. Entendia agora o porquê de seu pai não lhe contar. Era doloroso demais.
    — Não fique tão triste Pedro. — disse a menina se aproximando e afagando seus cabelos — A dor vai passar quando você a encontrar.
    — Encontrar?
    — Sim. Ela também está aqui.
    — Está aqui? Na casa? Como...? — indagou ele erguendo os olhos cheios de lágrimas para olhar a menina.
    — Ela não suportou viver naquele lugar. Dois anos depois de ser abandonada por ele no hospício...
    — Ele a abandonou num hospício? — perguntou ele levantando-se indignado — Ela morreu lá?
    — Sim. — respondeu ela simplesmente — Vamos, ele acabou de chegar. Está lá embaixo. Você poderá dizer a ele tudo o que está sentindo. Depois, poderemos encontrar a mamãe.
    Pedro não hesitou, não reagiu, quando a menina pegou sua mão e o guiou para fora do quarto.


    Thiago Alcântara continuava a não entender o que havia acontecido. Não entendia por que havia decidido sair de casa atendendo a um pedido de um bilhete anônimo que encontrara na moldura do espelho. Era certo que o bilhete estava endereçado a ele, mas isso não era motivo para sair e deixar o filho sozinho numa casa velha e assustadora. E quem era o homem que encontrara no jardim? Por que o alertara sobre a tal maldição? Seria uma pista de que fizera algum mal ao seu filho?
    A porta da frente estava entreaberta. Thiago entrou cauteloso no hall, deixando o guarda-chuva no cabide. Apenas um dos candeeiros estava aceso. Não ouvia nada além dos estalos de seus passos contra o chão.
    Sem entender o real motivo, talvez medo de que as palavras do homem fossem verdadeiras, resolveu acertar as horas e fazer o velho relógio funcionar novamente. O tic-tac ressoou no silêncio da casa. Faltavam treze minutos para a meia-noite.
    Olhou ao redor, procurando algum sinal de invasão. Então, viu manchas de sangue nas cortinas ao lado do relógio. Seu coração disparou.
    — Pedro. — sussurrou — Meu filho onde você está?
    Caminhou através da sala atento a qualquer sinal de luta ou barulho. Qualquer coisa que indicasse a localização de Pedro.


    Pedro atravessou o corredor. Seus passos lentos indicavam que não ansiava pela conversa que teria com seu pai. A menina não estava mais com ele. Desaparecera sem que percebesse. Quando chegou ao alto da escadaria, viu o vulto de seu pai entre os móveis da sala.
    Desceu devagar, tentando não pisar nos velhos ossos da antiga escada, mas era impossível não fazer barulho. Ele viu quando seu pai virou-se para olhá-lo, após o ranger do quinto degrau.
    — Pedro! — gritou Thiago correndo para alcançar o filho — Pedro! Você está bem?
    Pedro não conseguiu responder. Apenas ficou parado no pé da escada, frio, insensível, enquanto seu pai o abraçava.
    — Eu não devia ter saído Pedro. Não devia tê-lo deixado sozinho. Perdoe-me.
    — Perdoa-lo? — questionou Pedro desvencilhando-se do abraço — De que exatamente?
    — O que houve meu filho? Você... você estava chorando? Aconteceu algo enquanto estive fora?
    — Nada demais. Apenas recebi uma visita. — respondeu sentando-se numa poltrona empoeirada.
    — Que visita? Quem te visitou? O que queria?
    — Minha irmã. — respondeu ele virando-se para encarar o pai. Queria ver sua reação. Queria saber se iria continuar mentindo.
    — Sua... sua... irmã? Pedro... — Thiago estava atordoado demais para dizer qualquer coisa.
    — Minha irmã! — Pedro gritou. Não conseguiria conter a raiva. Precisava gritar, explodir e desaparecer. Seu coração estava doendo demais, ardia em seu peito como se tivesse sido rasgado ao meio. — Ela veio me fazer uma visita. E me contou tudo! Tudo! Ela contou que o senhor a matou! Contou que bebeu demais e a matou! — as palavras saiam de sua boca como se não fossem suas — E depois jogou minha mãe num hospício e deixou ela morrer sozinha, jogada fora!
    — Não!
    Thiago estava perdido. Completamente perdido. Como Pedro soube da irmã? Ele tivera o cuidado de nunca deixa-lo saber. Era doloroso contar. Era doloroso lembrar. E que sandices eram aquelas sobre ter matado a pequena Gabrielle?
    — Eu não matei sua irmã! — Thiago não conseguiu segurar sua mão. Quando percebeu o que estava fazendo era tarde demais.
    O som ecoou pela casa, através do jardim e perdeu-se em algum ponto da noite. Ele viu Pedro chorando, sua mão esquerda sobre o lado esquerdo do rosto. Então, entendeu. Nunca devia ter escondido. Nunca devia ter envolvido seu filho.
    — Não matei sua irmã. — sua voz ficara suave, leve, carregada de arrependimento e alívio — Jamais faria isso. Mas não o culpo por acreditar que eu pudesse ter feito. Errei em três coisas das quais me arrependo agora: por não ter lhe contado, por ter lhe envolvido nesta história e por ter deixado sua mãe abandonada num hospício para ir atrás dos culpados.
    Pedro estava inerte. A dor em sua face parecia arder mais que a dor em seu peito. Seu pai nunca levantara a mão para ele antes. O que estava acontecendo? Por que estavam brigando?
    — Pai. — conseguiu dizer levantando-se para abraça-lo — Pai desculpa. Eu não... eu não devia ter acreditado.
    — Sua mãe e sua irmã foram atacadas Pedro. Alguém ou alguma coisa matou Gabrielle. — Thiago não parou de falar. Sentia que se não falasse algo dentro dele racharia e sangraria até consumi-lo por inteiro. — Eu trabalhei até mais tarde àquela noite. Eu... eu sempre trabalhava até mais tarde — continuou ele com a voz carregada de culpa — Sua mãe ligou. Estava com medo, disse que estava ouvindo vozes e que o vento estava estranho... Eu não quis ouvir, estava atrasado para a entrega de um relatório. E eu não acreditei, ou não quis acreditar. Queria terminar o relatório. Apenas disse a ela que descansasse. Quando voltei para casa sua mãe estava no quarto e... e... ela estava segurando Gabrielle nos braços. Tão pequena, tão frágil e... morta. Sua mãe estava em choque. Repetia sem parar que alguém havia levado nossa filha embora. Dizia que aquela em seus braços não era nossa menina. Que ela fora levada por sombras. Nossa vida acabou naquele dia. Nunca encontraram os responsáveis. E é por isso que nos mudamos constantemente. Em parte para protegê-lo de quem quer que tenha feito aquilo. E também porque tenho empenhado meus dias para encontrar os culpados. Para fazê-los pagar.
    — Mas então... por que a menina disse que foi o senhor?
    — Porque quer aprisioná-los aqui. — respondeu uma voz que o senhor Alcântara reconheceu, vinda do jardim.
    — Isso não é verdade Thiago, querido. — respondeu uma voz doce do outro lado da sala. Thiago não ouvia aquela voz há anos. Virou-se abruptamente e contemplou assustado o rosto pálido de sua mulher. Ao seu lado estava a jovem Gabrielle, tão pálida quanto a mãe, abraçando-a — Não exatamente. Apenas queremos ficar com vocês. Ter nossa família unida novamente.
    — Amanda. — disse ele com a voz embargada.
    — Não dê ouvidos ao que ela diz Thiago! — gritou a voz do lado de fora — Venha para o jardim!
 
    O relógio ao lado da porta tocou.
 
    Uma badalada.

 Continua...

domingo

Um Encontro no Jardim


Primeira Parte - A Colina
Segunda Parte - Um Encontro Inesperado
Quarta Parte - Encontros
Final - Desencontros

    O senhor Alcântara estava a meio caminho do local combinado para a entrevista quando sentiu o cheiro de jasmim e seu coração disparou. A discussão com Pedro ainda ressoava em sua mente. De repente, os faróis do carro iluminaram algo na estrada, mas ele estava perto demais para desviar. O carro passou por cima do que quer que fosse com um solavanco enquanto o senhor Alcântara tentava frear a todo custo.
    Ele parou o carro e olhou para os dois lados da rua deserta. Não havia casas ou qualquer outro tipo de construção, apenas terrenos baldios e cheios de entulho. Ele saiu do carro e procurou pelo o que havia atropelado. Não havia nada na estrada. O cheiro de jasmim continuava a incomodá-lo. Procurou por jasmineiros ao redor, mas não havia sinal de algum por perto, nem mesmo uma brisa que pudesse levar o perfume ao seu olfato.
     “Isto não pode estar certo” pensou lembrando-se de Pedro. “Deixei meu filho sozinho por conta de um bilhete... Onde estava com a cabeça?!”.    Sem pensar duas vezes, o senhor Alcântara correu para o carro, o manobrou e, sem perceber ao certo, acelerou tanto quanto pôde. A impressão de que algo estava errado com seu filho fez com que dirigisse imprudentemente pelas ruas da pequena cidade.

    As nuvens escuras haviam se afastado da face da meia-lua, criando um círculo ao seu redor, como se tivessem sido forçadas a permitir que a “estrela da noite” vislumbrasse os acontecimentos n’A Colina.
    Os grandes portões de ferro, que davam acesso à propriedade, estavam entreabertos, com espaço suficiente para que um adulto pudesse passar. Aquele fato aguçou os sentidos do senhor Alcântara. Ele parou o carro e subiu a ruela de pedras a passos largos, sem se preocupar com qualquer coisa que não fosse a segurança de Pedro.
    Estava alcançando a margem sul do pequeno lago, quando viu uma figura sombria sentada sobre uma pedra, próxima de um canteiro de rosas brancas.
    — Quem está aí? — perguntou parando há alguns passos de distância.
    — Alguém que pode ajudar. — respondeu a voz de um homem.
    A figura ergueu-se lentamente da pedra posicionando-se para fora das sombras. O senhor Alcântara pôde vê-lo perfeitamente. Estava vestindo uma espécie de roupa de gala, talvez um black tie, antigo e em farrapos. Sua face era marcada por traços um tanto quanto... selvagens. As orelhas eram levemente pontiagudas, os olhos um pouco puxados e quase amarelos e os cabelos completamente despenteados. A barba por fazer destacava os lábios vermelhos e um meio sorriso.
    — O que quer dizer com ajuda? — perguntou rudemente o senhor Alcântara — E como entrou aqui?
    — Quero dizer que posso ajudar com seu filho. — respondeu o homem completando o sorriso.
    O senhor Alcântara olhou pressuroso para a janela do quarto de Pedro; as luzes estavam acesas. Tentou ouvir algo vindo da casa, mas havia apenas silêncio. Percorreu o terreno em volta da casa com os olhos, tudo parecia normal, exceto pela presença daquele homem.
    — Quem é você?
    — Isso realmente importa? Afinal, Thiago, seu filho corre perigo.
    O senhor Alcântara olhou novamente para a casa, tudo parecia normal, mas ainda sentia seu coração disparado. Ele deu dois passos na direção da casa, mas foi impedido de continuar quando o homem agarrou seu braço. “Como ele fez isso tão rápido? E como sabe meu nome?”.
    O senhor Alcântara olhou da mão do homem em seu braço para o seu rosto tentando se soltar.
    — Solte-me! Se meu filho está em perigo preciso fazer alguma coisa!
    — Não vai adiantar se for sem que eu lhe instrua.
    — O que quer dizer com isso?
    — Há certas... forças, agindo lá dentro.
    — Forças? Não tenho tempo pra isso.
    — Esta casa foi amaldiçoada Thiago, há muito tempo atrás. Desde então, ninguém que viveu ali, mesmo que por uma noite, sobreviveu.
    — Ora! Não me venha com sandices! Meu filho está sozinho lá dentro! — disse o senhor Alcântara contornando um canteiro de rosas.
    — Seu filho não está sozinho, a casa lhe faz companhia. E está agora mesmo tentando enreda-lo com uma falsa história sobre você e sua filha.
    — Gabrielle? O que... como sabe...? — Thiago Alcântara não conseguiu prosseguir.
    — Como sei sobre sua filha? Como sei que ela morreu nos braços da mãe? Ou como sei que sofre dia após dia, que tem pesadelos todas às noites por se culpar por não estar por perto quando aconteceu?
    — Sim... — respondeu Thiago com um suspiro e sentindo as pernas bambearem — Como sabe disso tudo? O que quer de mim e do meu filho? Ele é a única família que tenho.
    — Não quero nada além de ajudar. — respondeu o homem sentando-se nas sombras novamente — O senhor precisa apenas fazer o que eu disser e tudo terminará bem. Se fizer, se conseguir, a maldição será rompida.
    — O que preciso fazer?
    — Entre na casa, acerte o relógio e deixe a porta aberta. Terá dezessete minutos para encontrar seu filho e sair da casa. Contudo, terá de sair exatamente quando o relógio anunciar meia-noite.
    — Por que exatamente à meia-noite?
    — É a maldição. Não conseguirá sair antes disso. E, se tentar sair depois, não conseguirá, estará preso a casa como todos os outros, por toda a eternidade.
    O senhor Alcântara não estava realmente acreditando no que o homem dizia. Não sabia e não queria saber como o homem conhecia seu segredo, queria apenas encontrar seu filho e vê-lo em segurança.
    — Tudo bem, então farei como me disse. — concordou seguindo pelo jardim. Após alguns passos voltou-se para o homem. — Como é o seu nome?
    — Peter. — a voz do homem respondeu, mas não havia ninguém sentado na pedra.

Continua...

Um Encontro Inesperado


Primeira Parte - A Colina
Terceira Parte - Um Encontro no Jardim
Quarta Parte - Encontros
Final - Desencontros

    Pedro nunca vira a garota antes. Estava assustado. “Como ela chegou aqui em cima?”. Todavia, a menina lhe deu um abraço tão apertado e tão caloroso que ele se sentiu envergonhado por não retribuir.
    — Esperei muito por esse dia. — disse ela com um sorriso faceiro, o olhar distante, como se lembrasse de algo agradável que passara, e sentando-se na cama novamente.
    — Hum... Desculpe, mas... Quem é você? E... E como chegou aqui? — Pedro continuou onde estava, incapaz de dar um passo sequer, em qualquer direção.
    O sorriso da menina apagou-se tão de repente e foi tão profundo que Pedro teve dúvida se o tinha visto realmente. Os olhos dela, de um tom azul familiar, brilharam com lágrimas contidas.
    — Achei que você fosse gostar de me ver... — disse desviando o olhar para as mãos sobre as pernas.
    Pedro se deu conta de que preferia vê-la sorrindo, estava a ponto de chorar com sua tristeza. Era estranho, mas tinha a impressão de que a conhecia.
    — Desculpe. — conseguiu dizer.
    — Não... A culpa não é sua...
    — Como assim? — sentiu-se um idiota por fazer aquela pergunta.
    — A culpa é do papai.
        Pedro ficou sério. “Ela não pode estar dizendo o que eu acho que ela está dizendo”.
    — Do seu pai? O que quer dizer com isso? — ele torceu para que ela dissesse: sim, meu pai.
    — Do nosso pai! — respondeu ela com um sorriso cheio de alegria, como se as implicações daquela informação fossem a melhor coisa do mundo — Sou sua irmã, Pedro! E finalmente encontrei você!
    — Minha o que? Não tenho irmã. — ele desviou o olhar para a janela e continuou com a voz embargada — Sou só eu e meu pai...
    — Você sabe por que é assim? — perguntou ela deslizando uma das mãos sobre a colcha que cobria a cama — Por que papai nunca te contou sobre mim? Ou sobre o que aconteceu com a mamãe? Ou ainda, sabe por que vivem mudando de um lado para o outro? Por que ele não deixa que você se despeça dos seus amigos?
    Um vento frio entrou de repente pela janela, sacudindo os cabelos e roupas da menina de uma forma tão assustadora e penetrante, que os cabelos da nuca de Pedro se ergueram em sinal de protesto e pavor. Ele sacudiu a cabeça. “Como ela pode saber de tudo isso?”.
    — Pedro... — ela fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras certas — Papai nunca contou... porque não confia em você.
    Pedro ficou imóvel ante as duras palavras. Não conseguia entender o que estava acontecendo, apesar de se esforçar muito. Não conseguia se livrar da sensação de que algo estava errado, a mesma sensação que sentira desde o balanço no jardim, talvez, pensando bem, a mesma que sentira quando chegara ali. Algo na menina o estava prendendo, talvez o modo como sorria ou se mostrava alegre em vê-lo. Queria que fosse verdade o que ela contara, que era sua irmã, desejava isso. E, mesmo sabendo que nada fazia sentido, não conseguia se livrar dela e não sabia explicar como. A única coisa que realmente fazia sentido era que seu pai não confiava nele. Disso não tinha dúvida, mas sabia que, de alguma forma, ela havia intensificado o significado disto dentro dele. Estava preso a ela, como numa teia invisível de palavras e sentimentos.
    — Por que... por que diz que ele não confia em mim?
    — Por que ele pensa que você é perigoso... — respondeu ela com uma expressão inocente, como se não soubesse o quanto era doloroso para ele ouvir.
    — Perigoso? Por quê?!
    — Pelo o que aconteceu comigo e com a mamãe... Na verdade, ele quer acreditar que você é perigoso, assim pode ficar com a consciência mais leve.
    — Eu... não entendo. O que... o que aconteceu?
    — Ele acredita, ou quer acreditar, que você me matou. Mas eu sei que não foi você. Foi ele.
    — Ei! Calma aí que essa loucura já foi longe demais! Você está querendo me convencer de que está morta, apesar de estar aqui, na minha frente, me dizendo um monte de... de... maluquices... E ainda quer que eu acredite que meu pai coloca a culpa disso em mim?!
    — Não quero te convencer Pedro! — disse ela séria, cruzando os braços e juntando as sobrancelhas — Estou apenas te contando tudo o que sempre quis saber! Sou sua irmã... ou... ou... era. — a última palavra quase se perdeu no ar, Pedro só a ouviu porque se mantinha muito atento a tudo o que ela falava.
    — Então é isso? Você está morta? E fui eu quem te matou?
    — Não foi você... foi o papai.
    A naturalidade com a qual proferia as palavras era tão pura e simples, que não havia como Pedro não acreditar. Cada palavra, cada espaço de respiração entre elas, cada frase, tudo parecia ter sido feito perfeitamente nas forjas de sua alma, para que ele entendesse e aceitasse sem questionar, sem duvidar.
    — Como foi...? — perguntou Pedro cedendo os ombros e sentando-se rendido na banqueta ao pé da cama.
    — Ele me deixou de castigo aquele dia. Você sabe... “vá para o seu quarto e não saia até eu mandar”. Foi um pouco antes do jantar. Não lembro o que fiz, mas deve ter sido alguma coisa séria, pois ele saiu em seguida batendo a porta. Mamãe não achou justo, acho, pois ficou lá comigo, sabia que eu tinha medo. Ele também sabia que eu tinha medo. — completou ela com rancor, pela primeira vez — Você também estava lá. Tão pequeno... três anos apenas! Não entendo como ele pode pensar em te culpar!
    A menina olhou para fora, deixando o olhar vagar pela noite e recebendo um pouco de ar fresco sobre a face.
    — E... e... como aconteceu? — perguntou impaciente.
    — Quando ele chegou, bêbado como sempre...
    — Bêbado?! — interrompeu Pedro — Papai nunca bebe! Nunca!
    — Realmente não. Ele parou depois do que aconteceu. Mas naquela noite ele estava muito bêbado. Ele viu que a mamãe estava no quarto, ela tinha adormecido cuidando de nós. Ele ficou furioso, lembro que estava gritando e... e bateu nela, depois me tirou da cama e me bateu.
    Era demais para Pedro. Ele não queria ouvir mais nada. Queria correr para longe dali, para longe dela, mas não conseguiu. Sentiu como se suas pernas não fossem suas, como se estivessem recebendo ordens de outro cérebro.
    — Eu fiquei desacordada. Mamãe gritava desesperada, tentava lutar contra ele, tentou me tirar dos braços dele, mas ele não deixou. Ele pensou que eu estava morta... — ela fez uma pausa ofegante antes de prosseguir — Então ele teve a brilhante idéia de me jogar pela janela, para fazer parecer um acidente.
    — Mas... — interrompeu Pedro — Isso não daria certo. A polícia tem meios de descobrir.
    — Sim, tem. E é por isso que vocês se mudam com tanta freqüência.
    Algo, como um estalo na mente de Pedro, avisou-o de que as peças do quebra-cabeça estavam racional e perfeitamente encaixadas. Não havia arestas na história, exceto, talvez, uma.
    — E a mamãe?
    — Ela ficou louca. — foi a resposta direta e simples da garota. Àquela altura da conversa, a voz dela estava tão fria, que Pedro arrepiou-se ao ouvi-la.
    — Louca? — conseguiu dizer.
    — Sim. Ela não suportou o que aconteceu.

   Continua...